Ontem, após algumas semanas, revi Alice. Sim, revi. Revi numa tela sem texto. Não foi sonho, ilusão, não foi engano nem tão pouco confusão. Não foi. Nunca vira um filme sem o estar realmente a ver. Cheguei mesmo a estar de olhos fechados e a vê-lo. A banda sonora de “Alice”, filme de estreia do cineasta Marco Martins – quase indubitavelmente o filme português do ano – é absolutamente surpreendente. De uma simplicidade extasiante, ora, surpreendente. Ouve-se e faz-nos ver o filme; faz-nos sentir na pele toda a angústia que grassa por aquela história, do princípio ao fim; num ciclo vicioso, num ciclo sonoro que se repete; também de prazer. Habituado a mantas de retalhos sem ponta nem sentido, feitas à pressa bandas sonoras, a de “Alice” é mais do que uma simples banda sonora; é também o som. O som do filme. A banda sonora é o som e o som é a própria banda sonora. A banda sonora de uma Lisboa angustiada pelo inverno de uma chuva abundante, pelo som errante e contínuo dos carros que se passeiam pelo negro e molhado asfalto; os sons de uma Lisboa perdida, anónima. Lisboa Alice. O disco também é isto…
Em todo o disco se sente a tensão, se sente a história, se sente a tristeza que foge escorraçada da plenitude técnica deste trio luminoso de piano, clarinete (Rui Rosa) e contrabaixo (Iuri Daniel). Confesso que fico até confuso com tal esplendor, com tal sensibilidade de construção; ou desconstrução? a mensagem forte e imagética que trespassa do disco, faz dele um dos documentos musicais incontornáveis do ano de 2005; tão incontornável como o próprio filme; tão incontornável como a relação umbilical que os une.
Passaram 193 dias desde que Alice foi vista pela última vez.
Todos os dias Mário, o seu pai, sai de casa e repete o mesmo percurso que fez no dia em que Alice desapareceu.
A obsessão de a encontrar leva-o a instalar uma série de câmaras de vídeo que registam o movimento das ruas. No meio de todos aqueles rostos, daquela multidão anónima, Mário procura uma pista, uma ajuda, um sinal…
A dor brutal causada pela ausência de Alice transformou Mário numa pessoa diferente mas essa procura obstinada e trágica, é talvez a única forma que ele tem para continuar a acreditar que um dia Alice vai aparecer.
Está lá tudo. É absolutamente fascinante como os sons do quotidiano são utilizados para completar a música, para criar o cenário, para nos ajudar a ver a história; aquela: ouve-se a chuva, a respiração e o despertador, ouvem-se os carros, a câmara de filmar, ouvem-se as vozes da cidade, das crianças, de todo o universo de “Alice”; da cidade também.
Todo o universo está ali. Mesmo ali, radiante e arrepiante.
“Alice” – BSO Bernardo Sassetti (2005/Trem Azul)
01 Capítulo I – Prólogo: Hoje
02 Capítulo I – Passagens pela cidade, Parte I
03 Capítulo I – Passagens pela cidade, Parte II
04 Capítulo I – Passagens pela cidade, Parte III
05 Capítulo I – Passagens pela cidade, Parte IV
06 Capítulo I – Movimentos Invisíveis
07 Capítulo II – Noite, Parte I
08 Capítulo II – Noite, Parte II
09 Capítulo II – Interlúdio: Ontem
10 Capítulo II – Noite, Parte III
11 Capítulo II – Noite, Parte IV
12 Capítulo II – Noite, Parte V
13 Capítulo III – À espera de Alice
14 Capítulo III – Indiferença
15 Capítulo III – Epílogo: Amanhã
Jazz/Contemporânea
www.madragoafilmes.pt/alice
[…] e pianista que ontem nos deixou. Venha a música, essa nunca morre. Mas antes disso, um texto escrito em 2005 sobre a banda sonora de “Alice”, disco que Bernardo Sassetti compôs – disco do […]