Quando finalmente parece que uma parte do país acordou e descobriu o poeta, como se estivéssemos sempre à espera da chegada dos anos redondos, não podia deixar passar em claro, também aqui, os 20 anos do desaparecimento desse grande poeta do nosso tempo, desse grande fazedor de versos e incendiador de almas que foi José Carlos Ary dos Santos. Poeta maldito, poeta ignorado, poeta da música!
-Poeta castrado, não!-
Serei tudo o que disserem
Por inveja ou negação:
Cabeçudo dromedário
Fogueira de exibição
Teorema corolário
Poema de mão em mão
Lãzudo publicitário
Malabarista cabrão.
Serei tudo o que quiserem:
Poeta castrado, não!
Os que entendem como eu
As linhas com que me escrevo
Reconhecem o que é meu
Em tudo quanto lhes devo:
Ternura como já disse
Sempre que faço um poema;
Saudade que se partisse
Me alagaria de pena;
E também uma alegria
Uma coragem serena
Em renegar a poesia
Quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
A força que tem um verso
Reconhecem o que é seu
Quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala
-É tão vulgar que nos cansa-
Mas que dizer de uma bala
Num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
-a morte é branda e letal-
Mas que dizer da memória
De uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
O poema dia a dia?
-Um bisturi a crescer
Nas coxas de uma judia;
Um filho que vai nascer
Parido por asfixia?!
-Ah não me venham dizer
Que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
Por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
Falso médico ladrão
Prostituta proxeneta
Espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado, não!
José Carlos Ary dos Santos