E uma morte assim custa sempre muito. Depois, não há palavras que demonstrem a enorme genialidade do compositor e pianista que ontem nos deixou. Venha a música, essa nunca morre. Mas antes disso, um texto escrito em 2005 sobre a banda sonora de “Alice”, disco que Bernardo Sassetti compôs – disco do ano para a trompa.
Absolutamente extrordinário…que sensação…
Ontem, após algumas semanas, revi Alice. Sim, revi. Revi numa tela sem texto. Não foi sonho, ilusão, não foi engano nem tão pouco confusão. Não foi. Nunca vira um filme sem o estar realmente a ver. Cheguei mesmo a estar de olhos fechados e a vê-lo. A banda sonora de “Alice”, filme de estreia do cineasta Marco Martins – quase indubitavelmente o filme português do ano – é absolutamente surpreendente. De uma simplicidade extasiante, ora, surpreendente. Ouve-se e faz-nos ver o filme; faz-nos sentir na pele toda a angústia que grassa por aquela história, do princípio ao fim; num ciclo vicioso, num ciclo sonoro que se repete; também de prazer. Habituado a mantas de retalhos sem ponta nem sentido, feitas à pressa bandas sonoras, a de “Alice” é mais do que uma simples banda sonora; é também o som. O som do filme. A banda sonora é o som e o som é a própria banda sonora. A banda sonora de uma Lisboa angustiada pelo inverno de uma chuva abundante, pelo som errante e contínuo dos carros que se passeiam pelo negro e molhado asfalto; os sons de uma Lisboa perdida, anónima. Lisboa Alice. O disco também é isto…
Em todo o disco se sente a tensão, se sente a história, se sente a tristeza que foge escorraçada da plenitude técnica deste trio luminoso de piano, clarinete (Rui Rosa) e contrabaixo (Iuri Daniel). Confesso que fico até confuso com tal esplendor, com tal sensibilidade de construção; ou desconstrução? a mensagem forte e imagética que trespassa do disco, faz dele um dos documentos musicais incontornáveis do ano de 2005; tão incontornável como o próprio filme; tão incontornável como a relação umbilical que os une.
“Passaram 193 dias desde que Alice foi vista pela última vez. Todos os dias Mário, o seu pai, sai de casa e repete o mesmo percurso que fez no dia em que Alice desapareceu. A obsessão de a encontrar leva-o a instalar uma série de câmaras de vídeo que registam o movimento das ruas. No meio de todos aqueles rostos, daquela multidão anónima, Mário procura uma pista, uma ajuda, um sinal… A dor brutal causada pela ausência de Alice transformou Mário numa pessoa diferente mas essa procura obstinada e trágica, é talvez a única forma que ele tem para continuar a acreditar que um dia Alice vai aparecer.” (1)
Está lá tudo. É absolutamente fascinante como os sons do quotidiano são utilizados para completar a música, para criar o cenário, para nos ajudar a ver a história; aquela: ouve-se a chuva, a respiração e o despertador, ouvem-se os carros, a câmara de filmar, ouvem-se as vozes da cidade, das crianças, de todo o universo de “Alice”; da cidade também.
Todo o universo está ali. Mesmo ali, radiante e arrepiante.
Rui Dinis é um pai 'alentejano' nascido em Lisboa no ano de 1970, dedicado intermitentemente desde Janeiro de 2004 à divulgação da música e dos músicos portugueses.