“Fiz um pacto com a prostituição para semear a desordem nas famílias.” (“A Prostituição”)
Lançado numa edição de luxo limitada a apenas 3.000 exemplares, “Maldoror” é isso mesmo, nos seus mais variados sentidos, uma edição de luxo. Por fora e por dentro, na teoria e na prática, consciente ou inconsciente, “Maldoror” é mais um grande disco do colectivo bracarense, liderado pela figura única de Adolfo Luxúria Canibal. Mais do que um disco que é também um espectáculo, ou um espectáculo que também é um disco, “Maldoror” vem confirmar a grande forma criativa em que mantém os Mão Morta. Baseado no livro “Os Cantos de Maldoror”, obra maldita de Isadore Ducasse, sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont, “Maldoror” seria à partida, até para os Mão Morta – eles mesmo o confirmam, algo de tão arriscado como desafiante. Mas aconteceu.
“Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam.” (“A Porcaria”)
Desafio abissal. “Maldoror” é um espectáculo total, moderno, complexo, uma experiência única feita de teatro, vídeo, música e declamação. Seguindo o mesmo sentido de “Müller no Hotel Hessicher Hof”, tendo a literatura como rastilho do restante processo criativo, em “Maldoror” e contra todas as dificuldades narrativas que a própria obra encerra, o grupo vence em toda a linha, dando-lhe uma forte consistência e a congruência possível, necessárias à sua dramatização – música incluída. O 10º álbum de originais dos Mão Morta nunca desilude, muito pelo contrário, a cada acto, há uma vontade que se renova, uma vontade de usufruir do capítulo que se segue. Menos roqueiro que o habitual, em “Maldoror” são os ambientes que imperam, mais ou menos simplificados nos acordes, na forma como a electrónica pousa certeira em palco; são eles que dão cor ao excelente trabalho narrativo – e performativo – de Adolfo Luxúria Canibal. No lado oposto, nos momentos de maior densidade, quando todo o complexo instrumental entra em palco, os Mão Morta de sempre acordam; acordam-nos. É algo que se completa, brilhantemente, não deixando espaço para mais isto ou aquilo. Chega a ser arrepiante entrar em todo o universo de “Maldoror”.
“Eu sonhava que tinha entrado no corpo de um suíno, do qual não me era fácil sair, e que chafurdava os pêlos nos lodaçais mais imundos” (“O Sonho”)
Que mundo terrível nos é dado a conhecer pelo narrador Lautréamont, numa lírica absolutamente assustadora, pesada, negra. Um mundo que os Mão Morta abraçam de uma forma apaixonante, com os seus bichos estranhos, coisas, quadros figurativos de um mal extenso; do antigamente e do agora. O texto não é fácil, mas a solução encontrada é perfeita; única. Não sendo na estética musical um disco surpreendente, não deixa dúvidas o facto de ser efectivamente um disco de Mão Morta; um excelente disco, sendo extraordinária a forma como o grupo reinventa a sua história, a sua banda sonora, retirando de todo aquele estranho e perturbador texto, algum sentido. Tudo parece estar no sítio certo, tudo entra na hora combinada, tudo termina quando deve. Sem deslizes, omissões ou exageros, “Maldoror” é de uma densa sobriedade; absorvente. Entre o teatro e a música, os Mão Morta conseguem mais uma vez fazer as duas resultar. E que resultado. Mas isto é a música. Por outro lado, fica sempre a ideia que “Maldoror” só fica definitivamente completo quando o som e as palavras encontrarem a imagem; em palco ou em DVD – a sair brevemente.
“A poção mais lenitiva que te aconselho é uma bacia cheia de um pus blenorrágico com caroços, no qual se tenha previamente dissolvido um quisto piloso do ovário, um cancro folicular, um prepúcio inflamado arregaçado da glande por uma parafimose e três lesmas vermelhas.” (“A Poção”)
No palco, a encenação foi de António Durães, a cenografia de Pedro Tudela, os figurinos de Cláudia Ribeiro, o vídeo por Nuno Tudela e o desenho de luz de Manuel Antunes. Em palco, os Mão Morta, são Adolfo Luxúria Canibal – voz, Miguel Pedro – electrónica e bateria, António Rafael – teclados e xilofone, Sapo – guitarra, Vasco Vaz – guitarra e xilofone e Joana Longobardi – baixo e contrabaixo. Um pesadelo tornado realidade, este “Maldoror”.
Fantástico!
“Maldoror” – Mão Morta (Cobra Discos, 2008)