“Humanos Abençoados e outros contos”, os de agora que receberam a bênção da transfiguração, da invisibilidade e do desenraizamento, track by track. Jorge Ferraz Trio, track by track:
1. “Liga Magrebe Rosa”, um tema que começa com um diálogo entre um loop de intensa marcação rítmica, feito de sons que emulam Mbiras e Cítaras, e uma guitarra com ruído electrónico, para em seguida explodir numa espécie de pós space-rock. O título? Imaginem…;
2. “Borboletas sobre Dunquerque”: há aqui um orientalismo recorrente na minha música mas, um orientalismo de quem não procura nenhuma autenticidade nas suas escalas, o que aliás reflecte o cosmopolitanismo virtual de quem está desenraizado. Depois, um jogo entre guitarras eléctricas e uma não-humana orquestra de cordas, sobre um fundo de dança-marcha falsamente marcial, feita por crianças a caminho de uma guerra e acompanhadas pelas suas borboletas-bombardeiro;
3. “Latin Dark Fuzz”: uma longa introdução, uma conversa entre lentas GuitarTrónicas, feita de nostálgicos desenhos melódicos, pequenos poemas. Depois, lugar à feroz marcação de dois ofegantes loops (reconstruídos com pedaços da anterior versão deste tema, editado no meu disco anterior), sobre os quais assentam dissonantes chicotadas de guitarra, terminando em momento de puro noise (cortesia do José Ferreira), que tanta falta nos faz;
4. “Maria Rita”. Tal como em muitos outros temas deste disco, mas aqui de modo bem claro na linha de guitarra do que podemos chamar o refrão, estão presentes duas características bastante frequentes na minha música: melodias que são filhas rebeldes e não registadas das harmonias que os acordes das canções de José Mário Branco e José Afonso deixavam cair, juntamente com o leve melodramatismo kitsch das canções de despedida. Ah, claro, a habitual subversão dos instrumentos como sejam o intro feito por uma secção de metais, devidamente adulterada por um efeito de filtro. Naturalmente é uma canção com destinatário certo;
5. “Demolidores de Coração”, onde, por entre a percussão parcialmente programada, um irrespirável baixo sequenciado, fugidias guitarras noisy e a voz de dramatismo contido de César Zembla, se deixa ver uma enorme paixão pelas baladas de amor desencantado;
6. “Mediterrâneo que Corta (estação solar do drácula)”. Teve versão lenta e versão rápida mas, sempre foi um tema em crescendo espiralado, com paragens para respirar e re-arrancar, feito para viajar por um imaginário território turístico que não perde a memória nostálgica dos verões terminados, o momento em que os deuses nos falam e os fantasmas reaparecem, até ao ano seguinte… O tema chega ao fim com o motivo musical inicial, a que se segue a voz de Adolfo Luxúria Canibal, que lê um desses poemas da mágoa sobre o passado que regressa, transformando-se a sua voz e a sua leitura numa espécie de cibernética spoken-word fantasmagórica. Inicialmente, a voz espraiava-se pela música mas, dada a natureza da sua transformação, achei melhor deixá-la sozinha, a fechar-nos a porta;
7. “Administrative Institute Goes to Sleep”, um delírio de ritmos desajeitados em que a percussão faz a melodia, ambiente alienígena para a voz de Nuno Moura que lê serenamente o seu perturbante Poesia para Adormecer”;
8. “Ressoar e Rancor”: o que começa por ser um groove de dança compulsiva e meio desarticulado com sons electrónicos programados e com intermezzos de ambientes de filmes de terror barato vai, por via dos esparsos acordes de guitarra a contratempo e dum progressivo atabalhoamento rítmico, se transformar numa electro-tribal sinfonia infantil;
9. “Trux Loose”: uma pequena brincadeira com o meu filho, na altura com 3 anos, foi a base deste tema. Improvisávamos ruídos e isso ia sendo gravado. Ele, num teclado Midi ligado a um soft-synth e sendo gravada a sua interpretação com um ligeiro “quantize”; eu, com uma guitarra bem distorcida ligada a um pedal de oitavas, direita ao computador. E o que daí veio? Oiçam! É a inspiração para a base do tema sobre o qual assenta uma falsamente descontraída bateria jazzy, se ouvem fugazes aparições de sintetizador, aparece um falso quarteto de cordas e se arriscam umas pequenas frases de guitarra. Acho que era isso que sentíamos quando estacamos a brincar, à liberdade;
10. “O Inverso de um Stalker na casa de uma mulher Nua”: se calhar, mais uma pequena sinfonia infantil, esta, construída a partir de um velho tema que fiz para uma hipotética banda sonora de um filme de sci-fi. Uma espécie de sonolento acid-house mesclado de dub-step que, encontra sons não ocidentais e pede a experimentação de explosões de ritmos que se atropelam mutuamente com guitarras noisy. O resto não sei… soa-me bem e gosta das diferentes emoções que provoca;
11. “SpeedLow”. A recuperação de um tema editado sob o nome de «Fatimah X» e que é uma longa e lenta balada com um groove torcido, feita de percussões e guitarras sincopadas (num jogo entre pequenos solos melódicos e curtas transfigurações electrónicas), uma espécie de mantra vagamente psicadélico e que a todo o instante está à beira de dissolver ou perder o “tempo”, como muitas vezes acontece na vida, de resto;
12. “El Pasao”, a radical transformação do emblemático tema dos «Santa Maria, Gasolina em Teu Ventre!». A seguir a uma introdução de guitarra etérea, uma banda de músicos de noise-rock é obrigada a tocar à la Donna Summer (com o Sapo a fazer aqueles clássicos pratos de choque disco) sem abdicar de manter a sua cavalgante melodia.
“Humanos Abençoados e Outros Contos” – Jorge Ferraz Trio (Presente, 2010)